25/02/2011

Conto originalmente publicado na coletânea "O Grimoire dos vampiros" da Editora Literata.

Leitos de hospitais geralmente são lugares tristes durante o dia. A noite essa tristeza se intensifica, solidificando-se nas paredes recobertas de limo, no teto mal iluminado pelas lâmpadas fluorescentes, na camada de tinta que escapa das paredes. Fiz essa pequena constatação pessoal quando passei três dias e três noites inteiras, devidamente hospitalizado, graças a um calculo renal de aproximadamente dois milímetros, semelhante a um grão de arroz alojado em meus rins. Dizem que a dor do parto é uma das maiores dores que o ser humano pode sentir. Besteira! Passei dois anos nutrindo esse “filho bastardo” em meu “ventre”, e no fim me vi obrigado a expulsa-lo já em fase adulta. Cinco milímetros em forma de uma pequena pedra pontuda, formada basicamente de oxalato de cálcio e acido úrico.
       O fato é que durante aqueles três dias em que passei acordado, me virando interminavelmente sobre os lençóis novos, recém estirados, recebi basicamente duas visitas. Uma delas, é claro, era minha mãe. Chegava as dez e saia pontualmente as doze, quando terminava o horário matinal de visitas. Trazia meu almoço e enquanto me alimentava ela checava com cuidado os curativos provocados em meu punho esquerdo pela mão desajeitada de uma enfermeira descuidada. Minha mãe era uma boa pessoa e agradeço a Deus por ela. Mas o fato é que sempre tive medo do tempo e do que ele poderia fazer comigo. Mais ainda, do que ele poderia fazer com ela.

Fui testemunha ocular do quanto o tempo pode ser cruel logo no primeiro dia de internação no hospital Santa Maria, naquele inverno de 1967. O homem era um senhor já de idade. Tinha no rosto um aspecto cansado, com profundas olheiras marrons rodeando seus olhos. A pele flácida, repuxada drasticamente para baixo, formando uma papada enorme e disforme logo abaixo do queixo. As costas arqueadas e o andar lento, vagaroso. Estava acompanhado por uma garota extremamente bonita, que o ajudava a carregar o suporte metálico do soro. Seus olhos eram tão verdes e brilhantes quanto duas bolinhas de gude.
- Por aqui senhor. – Disse educadamente a outra mulher, que entrou no quarto logo em seguida, tomando a frente e indicando uma das camas ao meu lado. Usava um grande jaleco branco, que descia pelos contornos magros de seu corpo, quase até os joelhos. Seu rosto parecia tão cansado quanto o do senhor de idade, mas ela conseguia (ou pensava que conseguia) esconder isso muito bem com o blush e o pó compacto, espalhado pelo rosto como massa corrida em uma parede esburacada.
- Tem certeza de que vai ficar bem vovô? - Perguntou a garota dos olhos de bolas de gude. O velho balbuciou algo inaudível e se deitou, cruzando as pernas e os braços, encolhendo o corpo de lado em posição fetal. A mulher de jaleco o ajudou a tirar os sapatos e as meias, largando-os ao pé da cama após notar com crescente interesse a camada marrom de sujeira, semelhante à marca deixada em suas roupas intimas após uma incursão mal sucedida ao mundo da higiene pessoal.
- O horário de visitas é das dez as doze – Nesse ponto a voz da enfermeira oscilou, e por Deus... Que todos os santos me perdoem, mas eu juro que senti uma pontada de prazer despontar de seus lábios.
A garota corou e procurou, provavelmente nos recantos mais profundos de sua mente, se lembrar de como deveria ser um sorriso sincero. Tentou reproduzi-lo com o máximo possível de fidelidade, mas o que conseguiu foi apenas um ligeiro entreabrir de lábios.
Alguns minutos depois a enfermeira saiu, deixando o senhor de idade aos cuidados da garota dos olhos de bolas de gude.
- O que ele tem? – Perguntou minha mãe, rompendo o silêncio monótono do quarto.
- Alzheimer... – Disse ela. O tom parecia inarticulado, sussurrando as palavras, espalhando-as pelo quarto com o temor carregado na voz. Uma furtiva lagrima passeou por sobre suas bochechas.

Com o passar do tempo as visitas de ambas tornaram-se menos freqüentes. O leito do hospital tornou-se mais vazio. Cerca de uma semana depois o avô da garota dos olhos de bolas de gude e eu recebemos a segunda visita da qual falei no inicio desse relato. Não citei nomes pois não me atrevi a nomeá-lo, tamanho fora o terror que se alojara em minha mente. Mas se for necessário fazê-lo, prefiro chamá-lo de “O homem dos olhos vermelhos”, mesmo sabendo, inconscientemente, que a criatura que nos visitara aquela noite era tudo, menos humana.
A lua cheia despontava no céu, grande e redonda, ofuscando parcialmente o brilho das estrelas. As persianas, como sempre, estavam abertas, e pequenas tiras de luminosidade se atreviam a invadir a escuridão parcial do quarto. Assim como nas outras noites, eu não conseguira pegar no sono.
Já passava das duas da madrugada quando a porta do quarto foi aberta. Um frio cortante pareceu inundar o quarto, de repente, antes que eu me desse conta de que o vulto parado em frente a porta não era o da enfermeira. Seus contornos eram másculos e bem definidos.

O homem de jaleco moveu-se, sentando-se com cuidado no mesmo banco de madeira que a garota dos olhos de bolas de gude sentara apenas alguns dias atrás, deixando que um pequeno feixe de luminosidade que atravessara a persiana iluminasse parcialmente seu rosto. Fora apenas por uma fração de segundos, mas eu vi. O sangue de meu corpo gelou por completo. O olhos do homem de jaleco eram vermelhos, como brasas retiradas das profundezas do inferno. Fitavam o velho com alucinado interesse, enquanto pareciam queimar viva e dolorosamente sobre seu rosto.
Pensei em levantar e fugir. Correr. Me esconder em qualquer lugar onde o homem dos olhos vermelhos jamais poderia me encontrar, mas o medo me paralisou. O senhor do destino, que no final sempre comanda nossas ações, me fez permanecer ali, de olhos arregalados, fitando os contornos demoníacos do homem dos olhos vermelhos, enquanto sua cabeça se inclinava ameaçadoramente em direção ao velho. Suas mãos de dedos finos e longos tinham garras nas pontas. A pele dos dedos era flácida, enrugada e cinza, semelhante a pele em decomposição de um cadáver. Abraçou o punho do velho com seus dedos mortos e removeu com cuidado a agulha. Elevou-o até a boca, envolvendo o pequeno orifício provocado pela agulha com seus lábios ressecados e cinzas. O que se seguiu posteriormente fora um verdadeiro teatro de horrores. Eu podia ver o sangue fluindo nas veias do velho, indo de encontro aos lábios mortos do demônio de olhos vermelhos. Uma pequena poça de sangue se formou ao pé da cama, e quando pensei que o demônio dos olhos vermelhos havia terminado, algo mais aconteceu. Ele abaixou-se, inclinando seu corpo em um movimento humanamente impossível, sem dobrar os joelhos, até o chão. Uma enorme corcunda apareceu em suas costas e o jaleco de doutor que usava tornou-se pequeno, revelando uma massa de ossos magros, visivelmente desproporcionais, grudados a pele morta. Uma coisa grotesca e disforme, que jamais ousarei chamar de língua, saiu do interior de sua boca, contornando o ar em movimentos delicados e ao mesmo tempo horríveis, como uma cobra manipulada por um encantador de serpentes, e lambeu o chão. Seus olhos brilharam novamente, com o fogo oriundo das profundezas do inferno, e por um momento apenas me encararam, como se dissessem: “Você é o próximo.”
Mas eu não fui o próximo. Ao menos não naquela noite. O demônio dos olhos vermelhos se levantou, satisfeito, virou as costas e saiu, largando o velho morto atrás de si.
Muitos anos se passaram desde o acontecido. Na época tinha apenas dezoito anos e toda uma vida pela frente. Uma vida que ficaria marcada para sempre pela presença do demônio dos olhos vermelhos, durante uma noite escura, num leito frio e solitário de hospital. Hoje tenho noventa e dois anos e me encontro deitado no mesmo leito. Esqueci-me do gosto da comida que minha mãe preparava, do rosto da garota, mas do demônio dos olhos vermelhos eu jamais me esqueci. É o mesmo que se encontra parado agora, na porta do quarto, me observando com curiosa atenção.

FIM

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