19/03/2011


     Conto por: Edilton Nunes

      Chovia aos porres em Santa Clara e o céu parecia desmoronar-se em água, quando a carruagem de Maria Antonieta dobrou a única esquina ladeada de paralelepípedos. Metade da cidade havia abdicado de seus afazeres matinais e se prostrara ao redor da ruazinha principal, com as cabeças espichadas para fora das janelas, os olhos vidrados, alguns ainda com remela a corroer-lhes a iris, e bocas semiabertas, avidas por informação. De quem se tratava seria o assunto principal, o por que da visita inesperada viria em segundo plano, e quais benefícios concretos traria a passagem da forasteira inusitada em terceiro, porém, não menos importante.
     O trote dos dois cavalos que puxaram a carruagem se desfez junto a casa da prefeitura, onde um aglomerado de moradores já se fazia presente. As portas duplas de madeira se abriram e de lá de dentro desceu uma senhora distinta, que apesar de quase sexagenária, se portava com vigor e altivez digna dos primeiros comentários por parte da aglomeração. Ao seu lado, como que coroada por anjos, a expressão máxima da beleza capitanial. Maria Antonieta Castro e Silva. Longos cabelos dourados, olhos tão azuis quanto um céu sem nuvens, lábios rosados e pele alva feito porcelana. Desfilava por entre a plebe com desenvoltura e graça das criaturas naturalmente evoluídas, deixando, a medida que o fazia, um rastro perfumado de alfazemas que deturparia a paz de qualquer homem, por mais resignado a racionalidade que esse o fosse. Não tardou para que a noticia de sua vinda da capital chegasse até meus ouvidos, só algumas horas após o desembarque no prédio da prefeitura. "Se parece com um anjinho de porcelana", dissera o mensageiro, provavelmente absorto em pensamentos cujas intenções não eram de todas respeitáveis. "Veio com sua tia avó, Ermenilda, lá da cidade. Parece-me que a negócios."
     Como que por coincidência, creio eu, à sua visita precedeu-se uma série de "incidentes" naturais. Uma tormenta de proporções gigantescas, se levarmos em consideração o tamanho insignificante de nossa cidadela, destelhou metade das casas e arrancou as plantações de macaxeira pela raiz. Choveu, então, durante cerca de quarenta dias e quarenta noites ininterruptas. Quando o sol abriu, metade da cidade fora alagada e o barro invadira as casas pelas reentrâncias dos tijolos, das telhas, frestas de portas e janelas. Qualquer orifício de tamanho superior a um buraco de agulha se mostrara convidativo. Coube ao prefeito, cidadão de índole indubitável, que permanecia sobre constante ameaça de um ataque de nervos, custear a reforma dos casebres atingidos com o pouco de verba que conseguira arrecadar com os impostos, já elevados. A água do poço principal que abastece Santa Clara e metade de Santa Luzia, município vizinho, tornou-se, da noite para o dia, salgada, como que transmutada por mágica em água do mar. Há quem diga ter ouvido, durante a noite, enquanto quase todos dormem em silêncio, um ruido estranho, como que sussurrado das entranhas do poço de águas misteriosas. Correu logo o boato desmedido de que havia ali um corpo de baleia enterrado e que aquele que arremessasse a centésima moeda no poço, a desejar a sorte que por ventura jamais lhe seria atribuída, despertaria a criatura que ali padece em sono profundo. Um tremor de terra estremeceria metade de Santa Clara e traria abaixo as casas, barracas e mesmo as tendas decrepitas dos ciganos proscritos, que vez ou outra montavam campana nos arredores da região.
     Tal boataria não poderia originar-se de outra fonte, senão da boca imunda da viúva Gabriela. Figura de aspecto famigerado, avançando sempre de cocoras pelas ruelas forradas de paralelepípedos da cidade, protelando migalhas, de cabelos desgrenhados e pedaços de pano mal trapilhos a cobrir-lhe o dorso, de maneira precária e moralmente duvidosa. “Uma moedinha aqui senhor, que em tua casa não faz falta”. Chamavam-na de velha e louca, tendo como base sua aparência física e sua constante distorção da realidade motivada pela ausência do marido morto. Porém, por mais que aparentasse, viúva Gabriela não padecia de nenhum dos dois males. Soltava fumaça dos pulmões feito uma chaminé, mas nunca carecia de preocupar-se em comprar cigarros. Também não afanava. Não era do seu feitio agir com imprudência contra os que, direta ou indiretamente, saciavam-lhe a fome. Fumava as bitucas que recolhia com vigor do chão dos prostíbulos, usufruindo de uma ultima e prazerosa tragada por eles proporcionada, e quando o fazia, certificava-se, quase sempre com todo o esmero possível, diante da relativa parcela de lucidez que a acometia naqueles momentos, de que nenhuma grama sequer de fumo havia restado na palha. Como passatempo se empenhava em realizar previsões, em grande parte falhas, relatando os pormenores das revelações atribuídas a ela pela borra de café. O que era de conhecimento de poucos é que vez ou outra costumava a viúva lograr hesito em suas peripécias adivinhatórias, como quando da chegada de Maria Antonieta até Santa Clara. “Eis o que a borra nos revela: Uma dama vestida de negro, não por luxuria ou luto, mas devido ao fluxo inconstante e impreciso da dita moda, virá. Adornada de pedras preciosas e recoberta pelo cetim avermelhado do forro da carruagem, trará consigo a peste e a miséria, considerando-se que não há um sem o outro, posto que não são sinônimos, mas carecem de razões semelhantes para coexistirem.” Recitara a previsão com o dedo em riste e os olhos revirados das orbitas, ao passo que a mão direta jazia mergulhada na borra de café, atulhando a xícara até a metade. Padecia do suposto transe espiritual que antevira boa parte das previsões anteriores, observada por meia duzia de transeuntes que se limitaram a abdicar de suas atividades diárias e se prostraram diante da suposta adivinha com os olhos arregalados e o suor a escorrer-lhe sobre a testa vincada de rugas. Nos olhos a expressão de incredulidade, já que por mais belas que fossem suas palavras, nada significavam perante a população pouco esclarecida. Aqueles ainda não tinham sido tocados pela importância imensurável da revelação atribuída a eles pela viúva louca-não-tão-louca. Tal fato, é obvio, não tardaria a ocorrer, visto que dali a pouco mais de dois dias a premonição se faria tão concreta que se poderia literalmente tocá-la, e a carruagem de Maria Antonieta, ultima herdeira legitima da nobre estirpe dos Castro e Silva, se materializaria como que por mágica às portas da prefeitura.
     
     Conta-se que em tempos memoráveis, que precederam muito provavelmente em anos a construção da primeira edificação concreta de Santa Clara (uma casinha de pau-a-pique, com dois quartos, cozinha, sala e banheiro, espremidos em pouco mais de dez metros quadrados, numa ruazinha de clima seco e terreno árido), Viúva Gabriela, então solteira e órfã de Pai e Mãe, já padecia dos infortúnios provenientes da doença diagnosticada por ela própria como “pobreza crônica”, fruto da avareza incomum dos pais, que graças a má administração financeira culminara na falência quase total de bens materiais. Trataram logo de expugnar-lhe o nome do contrato de herança, temendo que o pouco que lhes restara fosse subtraído pela filha, cuja índole já se mostrara perspicaz e deverás desafiadora. “Que Deus nos valha e nos ajude. Montamo-nos num covil de cobra, Antônio.” Ouvira, sem querer, a mãe pregar certa vez, em meio a um acesso de nervos repentino, enquanto se acocorava na soleira da porta e remoía a camada de pele superficial dos pés com uma lixa de bucha vegetal. Conhecia de pronto aquele tom de voz, pois sempre que o fazia a mãe carecia de tomar gosto pelas palavras. Ofensas pessoais quase que palpáveis. Tão concretas que se poderia soprá-las e vê-las voando pela janela, feito andorinhas sobrevoando o telhado numa tarde quente de verão. Nestes casos a audição não se limitava a bloquear-lhe os impropérios, mas ao contrário, amplificava-os, de modo a que se pudesse ouvi-los mesmo à léguas de distância. Partia-lhe o coração sempre que tais afrontas eram proferidas em seu nome, por mais merecidas que o fossem, já que a quase órfã Gabriela nunca se portara como exemplo de moça de boa índole. Porém, naquele ano, a rotina ofensiva permaneceu em relativa calmaria, com o decorrer dos meses que se arrastavam mornos pelo ano de plantio menos produtivo das cinco ultimas décadas, até, é obvio, a data da passagem do “Redemoinho Loiro”, numa tarde tão quente que a saliva secava antes mesmo que pudesse umedecer os lábios. Chamavam-na assim pois era a personificação humana da fúria naturalmente exibida nos círculos de vento. Os cabelos amarelos caiam-lhe sobre os ombros em pequenas ondas, frágeis e de movimento inconstante. Os olhos eram tão grandes e encantadores quanto diamantes brutos, recém lapidados e de valor, tanto financeiro quanto moral, incalculáveis. A pele era lisa e castigada pelo sol. Já os lábios, rosados feito morangos frescos, padeciam no auge de sua maturidade, como que uma parte desconexa, porém tão bela quanto (ou mais) o restante do conjunto. Chamava-se Clara Gabriela, prima em terceiro grau e enteada de batismo da mãe de ainda não órfã Gabriela.
     A beleza de Gabriela Prima, acentuada pelos contornos endeusados de seu corpinho recém-formado de mulher, atraíram quase que de imediato a atenção de Antônio, instigando-lhe nas noites de insonia os mais perversos e repugnantes desejos sexuais, aflorando-lhe de modo instintivo e pecaminoso os desejos incontroláveis da carne. Logrou hesito em controlar seu impeto selvagem de macho reprodutor durante o longo e cansativo período de duas semanas, vivendo e sobrevivendo em relativa harmonia com a sobrinha de batismo da dedicada esposa, descontando-lhe o desejo sexual quase desenfreado nas costas já arqueadas da própria esposa, que já passara a desconfiar (mas não reclamar) do apetite desmedido do marido, até então tão pacato e solicito.
     Encontrou-a à beira do rio, de águas tão calmas e cristalinas que se podia enxergar até mesmo a superfície ondulada das rochas ao fundo, sem que para isso se tomasse de muito esforço. Banhava-se na água corrente pelo menos três vezes ao dia, dando conta das partes intimas com um pedaço duro de sabonete artesanal a agredir-lhe a pele, com cheiro inebriante de jasmim e textura áspera de bucha de ganhão. Tencionava com isso espantar o mal olhado. Dentre as inúmeras frivolidades atribuídas às mulheres de sua estirpe, aquela era a que mais lhe apetecia. Tinha em voga que moças de boa índole careciam, antes de tudo, de inquestionável higiene pessoal.
     Espiou-a de cocoras, oculto em meio ao mato, com a ânsia aflitiva dos necessitados, esperando, controlando-se a medida em que o redemoinho loiro se desvencilhava das vestes, exibindo os contornos do corpinho recém-formado de maneira pouco lúdica, porém, na mente perturbada do quinquagenário Antônio, sensual e hipnoticamente devastadora. Sentia o desejo a aflorar-lhe a pele a cada peça de roupa despida, a cada contorno revelado, a cada seio exposto. A água escorrendo pelo cabelo amarelo, aos seus olhos, era como o encontro irracional entre fogo e água, a harmonia impossível materializada diante dos seus olhos de pouco credo, ao alcance das mãos calejadas. Notando que a sensação de solidão não era de toda legitima, Clara Gabriela logo tratou de cobrir ar partes intimas, guardando para si o pouco de recato do qual ainda dispunha. “Quem está ai?” Não obteve resposta. Porém, antes que se prestasse a repetir o questionamento, ouviu um graveto a estralar no mato. Antônio Inácio se revelara, sem pompa ou ostentação, com um sorriso amarelo que pouco mais era que um entreabrir de lábios secos, umedecidos apenas pela saliva que lhe escorria da boca, ao passo em que os olhos, outrora vividos e astutos, se fixavam mornos na beleza escultural de sua dama adornada, despida de todo o seu pudor logo a frente. Não rogou que lhe perdoasse a indiscrição, assim como não manifestou qualquer intenção que fosse de demonstrar que o que fazia era, sem margens para duvida, inapropriado. Avançou aos trancos e barrancos, observando, ainda que de longe, premeditando na mente febril tanto quanto astuta, cada possível reação por parte de sua deusa encarnada. Usou os braços fortes, puxando-a de encontro a seu corpo recoberto de cicatrizes e queimaduras do sol, laçando-a feito gado sendo levado para o abate. Não havia de existir amor ali, ou mesmo o mais ínfimo fragmento de algo que se assemelhasse a tal. Apenas a fúria intuitiva de macho reprodutor a corroer-lhe as entranhas, escorrendo pelo estomago e indo de encontro às partes pudicas, acendendo-lhe o fogo do apetite sexual desenfreado. À Clara Gabriela não restou nada, senão acolher aquela manifestação cruel de virilidade da maneira como pode, ainda que de mal grado. Rasgou-lhe a blusa, cheirando, sugando a essência de jasmim de seu corpo feito terra seca absorvendo chuva nova. Passeou por sobre as curvas do seu quadril largo, ligeiramente desproporcional, com as pontas dos dedos calejados a ofender-lhe, ao passo em que iam de encontro as partes intimas, à terra fértil ainda inexplorada. Clara Gabriela desfez-se em pranto e bastou-lhe apenas um único gemido inconsciente de dor, para que seu mundo desabasse em um orgasmo tão superficial quanto profano.
     Seus corpos largados ao léu descansavam, enroscados, suados e banhados pela água corrente que, como logo constataria prima Gabriela, não fora suficiente para expugnar-lhe do dorso o estigma de mal olhado. Fora em meio aos murmúrios de arrependimento, em meio as troças desconexas de que se poderia interpretar como um pedido de desculpas, que sentiu a fisgada repentina na altura do abdômen. De inicio pensou tratar-se de uma mordida de peixe, um encontro indesejável com um molúsculo espinhoso. Porém, antevendo a ideia que logo passaria a se materializar de forma mais concreta, sentiu o estomago sendo rasgado e outra mão, essa desprovida de carinho ou mesmo da brutalidade sentimental da qual padecem os loucos de amor, apertando-lhe os braços, forçando-lhe a barriga de encontro a lamina afiada de uma faca. O rosto a sua frente palpitou, o mundo encheu-se de um vermelho crepuscular e os olhos da agora órfã Gabriela fitaram-na através do manto de sangue que ocultava-lhe a visão. Caiu morta em seus braços, antes que o derradeiro suspiro findasse, com os olhos abertos em um misto inapropriado de pavor e indignação, ainda fitando o amante com a garganta cortada num talho que varava-lhe o pescoço de uma orelha a outra, nú, boiando sobre o leito do rio de águas vermelhas.
     Órfã Gabriela limpou a lamina da faca com a bainha do vestido, remoendo as lembranças antigas de um passado não tão remoto assim, mas que, diante das circunstancias, se fizera passado. Do tipo morto e enterrado. Cravou a lamina no chão, entre um amontoado de pedras pontiagudas, rasgando metade da mão direita em uma delas, durante o processo, e suspirou. Não havia alivio naquele suspirar. Menos ainda a sensação de desprendimento da carne que tencionara sentir após o ato. Fizera um favor a mãe, era o que a mente, agora conturbada e repleta de indagações pessoais inesperáveis, se fazia pensar. Faria outro. Dar-se-ia ao trabalho de enterrar os corpos dos dois amantes de vida curta, antes que o sol se dispusesse a varar o horizonte. Primeiro o dela. O da prostituta que profanara, sem o menor indicio de remorso, a santidade proclamada de seu lar. Em seguida seria a vez dele. Cortar-lhe-ia o resto da cabeça fora, indo a forra, motivada pelo desejo repugnante camuflado de justiça. Porém, o que se pode notar em um tom sincero de pesar, se é que me permitem tal intromissão, é que Órfã Gabriela era a personificação ostentada da maldade. Talvez o por isso do encontro que se seguiu ao enterro.
     Sentiu a mão gelada do morto a agarrar-lhe o pulso com a força descomunal do outro mundo. Os olhos da cabeça decepada por baixo da terra fitavam-na, completamente brancos, revirados nas orbitas oculares a padecer em transe profundo. Da boca reverberavam impropérios diversos, ao passo em que a língua do defunto se movia astuta, espantando a areia que bloqueava-lhe as cordas vogais, feito uma uma serpente a vagar pelo deserto escaldante, hora sumindo, hora aparecendo, hora visível, hora invisível. Com o pomo de Adão a ir e vir num frenesi descontrolado, o jogo de palavras veio rápido e sem pausas. “Órfã Gabriela, mata e enterra. Já veio o Diabo, e de pronto lhe carrega. Órfã Gabriela, mata e enterra. Já veio o Diabo, e de pronto lhe carrega. Órfã Gabriela...”
     Por instinto Gabriela lutou, bravejou e implorou pelo auxilio celestial. Em resposta nada veio, senão o silêncio reprovador de um pai decepcionado com o filho, de cujo castigo se mostrara merecedor. Porém, nem o Diabo se veria livre das garras tão demoníacas quanto, da agora órfã Gabriela. Visto que em sua doentia concepção deturbada, o mal se combate com o mal, lançou a mão que de livre ainda restava ao ar, resmungando dois ou mais termos desconexos, quase inaudíveis, antes de recitar as palavras finais, sussurradas perante o calor das chamas do inferno que começam a fustigar-lhe a pele. “Espere... Espere... Um acordo. Façamos um acordo, honesto e limpo, como os bons acordos devem ser. Dou-lhe de pronto, o que bem quiser, caso rejeites minha oferta. Senão, trago-lhe uma alma pura. A primeira em sucessão. O primogênito de minha linhagem, o primeiro da estipe que ainda há de nascer do meu ventre imaculado.” Como que guiada por magia, sentiu a mão do morto afrouxar-lhe o aperto. Numa sensação quase cômica de alivio bateu com as nádegas nada proeminentes de supetão no solo pedregoso da margem do rio. O olho moribundo ainda a fitava com o mesmo branco opaco e sem vida a correr-lhe a iris, dançando de modo lento, quase hipnótico, pelas orbitas.
     O medo se fez concreto, rodeado pela sensação arbitraria de perigo intencional que os olhos do morto suscitavam. Ainda há de nascer criatura capaz de definir tais sentimentos, de traduzi-los em palavras, visto que nema própria viúva jamais se prontificara a fazê-lo. Os fatos aqui narrados são uma mera tentativa, que não se assemelha, nem de longe, com o terror original imposto pelo defunto de olhos revirados. O pouco de relato que se tem noticia, com exceção desse, encontra-se encoberto pela tênue camada de superstição que o tempo dos menos esclarecidos se encarregou de criar. Porém, é de certo que a tragédia que se abatera sobre a agora Órfã Gabriela, na data de seu encontro com o carcará em pessoa, padeceu de ramificações misteriosas diversas. A partir de então, por onde passasse, cada pequeno pedaço de terra que se prontificava a aquendar prosperou como nunca havia se visto. De improdutivos cestos de estrume de gado passaram a áreas férteis, donde até mesmo o mais inapropriado pedaço de grão germinava. Tornara-se conhecida em toda a região do Alto Engenho como “A mulher que enfrentou o Diabo”, em uma versão ligeiramente diferente, porém mais conhecida e disseminada do que a historia original. Tornou-se adivinha de borra por acaso, quando se prontificara a fazê-lo certa vez, durante um anoite de fúteis frivolidades que encabeçaram as festividades de ano novo. Acabou, como que por acidente, logrando hesito em suas peripécias adivinhatórias, acertando desde a virgula primeira ao ponto final de sua mais conhecida premonição. Sua prima Bernardete (moça recatada, de índole inquestionável e residente no exterior, despedindo-se dos momentos finais de descanso no Alto do Engenho com o mesmo nó na garganta de muitos que viriam depois dela) ouviu-a recitar a previsão com o indicador, abraçado tantos anos antes pelo morto, em riste, e o mesmo olhar hipnótico que guardaria pelos anos e inúmeras premonições mal cabidas que se seguiriam. Segundo ela, sua prima lograria hesito na então árdua missão de tornar-se mãe, mesmo com a pistola do marido já não disparando tanto quanto de praxe. “Não me interprete mal prima. É que a qualidade da pólvora já não é mais a mesma com o debandar dos anos” apregoava ela, em tom sarcástico, porém otimista. “Sossegue prima. Há de nascer um machinho bem requisitado e robusto, que porá fim ao martírio do seu parto inconcebível. Caso contrário, mudo de nome e faço penitencia num convento de freiras.” Há quem diga que ouvia-se um risinho descabido, vindo de onde não se sabe, sempre que tal promessa era proferida, já que aquela não fora a ultima vez, nem de longe, que a agora Viúva Gabriela se mostrara tão confiante de si mesma. O que se sabe dai em diante (assim como boa parte do anterior) é pura especulação e carece de fontes mais confiáveis. Porém, o que é importante ressaltar, é que a penosa historia de Viúva Gabriela não se conclui por aqui. Apenas descansa, padece em seu sono profundo assim como é quase certo que o mal que se instalara no coração de não-tão-pobre-viúva também dorme, aguardando apenas pelo momento certo do despertar.


FIM

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