22/01/2011

Brincando de escrever...


 Fim de ano. Novas promessas e velhas tentações. Já passava das duas da madrugada, quando Antonieta veio a mim, procurar pelo então bom moço que deixara para trás as luzes da ribalta na praça de San Antônio e se resguardara em seu apartamento decrepito e igualmente sombrio. Bateu-me à porta com a mesma ânsia intuitiva de um cobrador de impostos insensível, com os nós dos dedos estalando ruidosamente por sobre a madeira velha, carcomida pelas traças.
“Gardênio, abra! é Antonieta.”
“Entre” - Convidei-a, meio sem jeito e vontade, a aproximar-se. Seus olhos, resguardados pelas cavidades oculares exageradamente profundas e acinzentadas, eram a mais pura expressão de monótono cansaço matinal. Notando com característico desdém a falta de esmero do recinto, lançou-me de relance um olhar fulminante, que tencionava dizer mais do que as palavras seriam capazes de fazê-lo.
“Um pouco de sobriedade faria bem.” - Disse ela, me fitando com seus olhos duros, impenetráveis.
“Não quero ser sóbrio Não preciso ser sóbrio A sobriedade faz das pessoas idiotas.” - Respondi, relutante. Me apegava as mais ínfimas lembranças de um passado remoto e quase esquecido com o mesmo ardor de um náufrago prestes a ser resgatado.
“E a falta dela as transforma em canalhas.”
“Que seja. Antes um canalha bêbado do que um idiota sóbrio.”
“Sinto-me inclinada a discordar.”
“Sua opinião é irrelevante. Vinho?”
“Não, obrigado. Bem sabes que não posso. A proposito, quantas taças já bebeste?”
“Perdi a conta depois da oitava.”
“Justine não vai gostar nem um pouco de vê-lo nesse estado.”
“Ui... La vérité! Que Justine vá a merda! De hipócritas já me bastam os cobradores de impostos. Sanguessugas de uma figa.”
“Ela gosta de você.”
“Você também. Nem por isso tenciona me por um cabresto e me levar pra pastar.”
“Não foi em você que o cabresto foi posto. E ela gosta mesmo de você.”
“A reciproca é, verdadeira, acredite. Mas ambos sabemos que isso é igualmente irrelevante. Já amei por demais. Não há mais espaço nesse coração cansado para os transmites legais de uma nova paixão.”
“Hora vamos… Deixe de besteiras! Ande, levante-se! Tome um banho e venha passear comigo.”
“Com mil perdões, minha dama das camélias, mas daqui não saio nem carregado por uma tribo de canibais selvagens.”
“Quanta pompa, dramatismo em excesso. Seria comovente, se não fosse patético.”
“Patético ou não, encontro-me temporariamente indisponível. Fechado para balanço, meu bem.” - Nisso um movimento brusco de braço quase leva a pobre Antonieta a nocaute. – “Perdão. Lamento por isso também.”
“Passaste a noite aqui? Se esbaldando de vinho barato?”
“Também. Se há algo relativamente novo em minha concepção com relação ao conteúdo etílico em questão, é que não existe vinho barato. No fim, todos servem ao mesmo proposito.”
“Torná-lo cafajeste?”
“Exato. O absinto também teve sua parcela de culpa no processo, mas, como vê, acabou relativamente cedo.”
“Fala do conteúdo esverdeado nessa garrafa?”
“Sim senhora.”
“Aquilo não era absinto.”
“Não?”
“Não.”
Observei-a, inspecionando cada intimo recanto de sua tez exageradamente feminina. Os contornos dos seus lábios, delicados e bem delineados, exalavam sensualidade. Seu nariz afinalado, ligeiramente empinado, e sua pele semelhante a textura de pêssegos recém-colhidos usufruíam da calidez pálida dos amores não correspondidos. Assim era Antonieta. Respirava sensualidade e instigava os homens, mesmo que inconsciente de que o fazia, a jamais reprimirem seus instintos primários e por consequência, selvagens.
“Sinto sua falta.” – Confessei, abstendo-me do pouco de bom senso que ainda resistira as intempéries de uma mente conturbada.
“Você fede a gambá!”- Respondeu ela, ignorando de imediato a confissão inapropriada.
“Papai Apolinário não lhe ensinou boas maneiras, menina?”
“Boas maneiras são para pessoas de boa índole, o que, é claro, não se aplica a ti.”
“Culpo a bebida, sempre. Uma fábrica de mal caráter, mas igualmente tentadora.”
“Pobre Justine...”
“Sinceramente Antonieta... Não compreendo toda essa sua complacência. Justine padece em seu poço de ignorância, feliz, ainda que amarrada as rédeas de um amor não correspondido.”
“E existe castigo pior que amar e não ser amada?”
“Responda-me você.”
“Sabes bem que não posso. E pelo pouco que me recordo, foste tu o causador das intempéries e martírios da coitada.”
“Vocês mulheres... Sempre vitimas das consequências.”
“E vocês homens, constantes causadores.”
“Absinto?”
“Não dissestes que o absinto acabaste?”
“Pensei... Mas tu disseste que aquela era a garrafa errada, então deduzo que essa seja a correta.”
“Isso é detergente.”
“Sério?”
“Sério.”
“Ótimo...”
“O que tens, afinal, meu pobre amigo?”
“Uma dor de cabeça dos infernos.”
“Vê-se logo que não se apaziguou com o vinho.”
“O bom vinho intensifica os sabores e elimina as dores. O mal, suponho eu, exerce efeito contrário.”
Por fim, nos vimos passeando pela orla da praia, próximo a praça de San Antônio, ambos fugindo das luzes festivas e do excesso de frivolidades desperdiçado nas festividades. Antonieta falava pouco, surrupiando as palavras do seu eu interior a medida em que o fazia. Não sei se foi devido a ambientação peculiar do momento, ou ao fardo de ter que preservar a sanidade em meio ao delírio matinal das festividades transviadas, mas acabei por me apegar a sensação nostálgica de desprendimento, e confessei, de pronto, o martírio que me atormentava.
“É que hoje acordei com um comichão no coração.”
“Esses são os piores” - disse, por fim, após um longo minuto de silêncio – “Coçam em lugares onde não há como coçar e arrebentam a alma.”
Uma pontada de desalento se instalou em mim. Limitei-me a aceitar as palavras como se a mim viessem numa torrente de incrível consistência verbal.
“Sinto muito meu amigo.”
“Não sinta.” - Respondi de imediato. – “Um último abraço?”
Antonieta sorriu. Abriu os lábios, exibindo a perfeita simetria com a qual seus dentes se encaixavam, sobrepostos, amigáveis.
“Sabes, bem como ninguém, que nossos abraços nunca são os últimos” – E dizendo isso envolveu-me com seus braços finos, sua pele cálida e seu cheiro nauseante de perfume barato. Ficamos ali, durante um bom tempo, perfazendo as lembranças, materializando-as num abraço fraternal, pontuado-as em um ou dois cantos pelas lágrimas que começavam a me roçar o rosto.
Visitei seu túmulo precisamente as duas horas e vinte e três minutos do novo ano que se iniciava.
“Sinto mesmo…" – Repeti, para a escuridão que se intensificava, fitando o concreto duro de sua lápide com o coração pesado e alma em pranto – "Sinto muito mesmo sua falta…”

FIM

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